quarta-feira, 28 de março de 2012

SUBURBANA, DE LIMA TRINDADE

No dia 29 de março, Salvador completa 463 anos. E para comemorarmos segue abaixo esse belíssimo texto do escritor Lima Trindade.

Da Calçada a Paripe vagam meus olhos, ora doces e alegres, ora amargos e entristecidos. Vão emoldurados por vidraças sujas de ônibus ou, enquanto caminho, pelas linhas ferruginosas de meus velhos óculos. Passo quase imperceptível. O sol hoje é de todos e me embala. Deixo para trás os velhos conceitos. Não, aqui o limite não é claro. Pobre e rico se confundem. Velho e novo também. Os dormentes da estrada de ferro não levam ao fim do arco-íris. Mas há ouro negro jorrando de corações enternecidos. Ednalva recebe bolsa-família e já tem condições de bancar o aparelho de celular e a tevê LCD. Em prestações se leva a vida? Quantas canções será preciso dançar até que o último convidado seque seu copo? Dona Judite se orgulha toda vez que recebe a carta do banco felicitando-a por conta do seu aniversário. Parece pouco a ti, leitor? Eu sigo sem novelo, maravilhando-me pelos sinuosos becos e estreitas possibilidades. Quantas cores temperam a paleta desse mar? As casas, feito bandeirolas, feito jogos de armar, castelos monumentais de areia. Não, não penses que sou ingênuo, que romantizo a indigência alheia. Eu simplesmente não me permito fechar os olhos durante o passeio. As feiras de frutas e verduras não seguem planos nem metas. Estou ébrio pela profusão dos aromas, pela singularidade desses outros olhos que me furtam de mim e me fazem descansar na linha sinuosa de determinadas costas ou lábios. O comércio informal é um rito de passagem, um pretexto para boas e más amizades. Nele, proliferam indispensáveis inutilidades: pés de sapatos perdidos, relógios sem corda, capas de antigos LPs, ervas para dores, chamados e mandingas, retratos de família, fotonovelas, correntes de bicicletas, cadeados sem chaves, um quadro de Raul Seixas e diversas outras coisas mais. Ao seu redor, a oficialidade do mundo organizado das instituições bancárias, lan houses, funerárias, clínicas odontológicas, bares sempre cheios, hotéis de entra e sai, escolas e tudo o que rege a cidade em qualquer outro lugar, seja ele Plafaforma, Periperi ou Lobato. Ademais, não te esqueças, o Centro é logo ali. O limite, repito, não é tão claro. Bacalhau tem compleição física de atleta. Ele vê o pôr do sol em Itapagipe. Os fones de ouvido tocam Crioulo. A beleza da natureza o faz chorar. Eu o abraço como se abraça um bom amigo. Não lhe faltam razões para chorar. Mas ele, como muitos de seus irmãos, escolheu erguer os olhos para a beleza.

Lima Trindade é escritor, autor de Supermercado da solidão, Todo sol mais o espírito santo e Corações, blues e serpentinas

Texto Extraído do Jornal A Tarde – Revista Muito em 25/03/2012

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