sábado, 5 de dezembro de 2015


Racismo, discriminação e drogas...

Josiany Dórea
Em tempos de muitos comentários e polêmicas sobre racismo, preconceitos e discriminação racial, acredito que seja interessante ouvir outras vozes. Assim, podemos analisar e/ou discutir os problemas sociais brasileiros com um novo olhar. Será que Carl Hart está com a razão? Vejamos...

"Brasil vive apartheid e culpam as drogas", diz Carl Hart

Ascom - Secretaria da Justiça do Estado / Divulgação
Primeiro neurocientista negro a se tornar professor titular da universidade de Columbia, em Nova York (EUA), autor do livro Um Preço Muito Alto: Jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas, o pesquisador norte-americano Carl Hart. 

Na segunda passagem pela capital baiana, Hart fala sobre o trabalho que vem desenvolvendo em relação à política mundial antidrogas (na visão dele "uma política enganadora").

1- Quais são suas principais ideias sobre a política de drogas no mundo?
(Carl) É uma pergunta ampla. Escrevi um livro inteiro sobre isso. As políticas de drogas são diferentes a depender de onde se está. No Brasil, o principal problema é que as pessoas estão sendo induzidas ao erro, enganadas, em relação às drogas na sociedade. Dizem à população que as drogas são um problema em si, quando as questões estão ligadas à própria estrutura social, discriminação racial, pobreza, falta de educação, falta de inclusão em certos grupos. O que há, essencialmente, é um apartheid. E culpam as drogas, por meio de campanhas contra o crack, como se o crack fosse o problema. O crack apareceu no Brasil por volta de 2005, a pobreza está desde sempre, assim como a violência e o crime. Atribuir essas questões à existência das drogas e dos traficantes é desonesto. Sugiro às pessoas, principalmente aquelas que estão sendo colocadas nas cadeias ou mortas pela polícia, que se levantem e digam: "Essa política antidrogas é besteira!".

2- A respeito da defesa do sr. da legalização ou descriminalização das drogas nos EUA, o mesmo pode ser aplicado no Brasil?
(Carl) Claro. Seja legalização ou descriminalização, o que quer que funcione na sociedade seria bom. Devemos perguntar quais questões queremos resolver: Se estamos preocupados com traficantes, teremos que pensar sobre a legalização, pois tem a ver com o comércio. Por outro lado, traficantes não terão êxito se houver inclusão social. Até descobrimos como sermos mais inclusivos, sempre teremos problemas com o tráfico. Onde houver drogas e pessoas terá tráfico. Mas, enquanto pessoas não forem incluídas, haverá economia clandestina.
3- O sr. crê que o uso de drogas passa por um problema de saúde em vez de polícia?
(Carl)  Depende muito. Para a maioria das pessoas que usa drogas não se trata de um problema de saúde, embora possa se tornar. Pense, por exemplo, no uso do automóvel. Muita gente dirige de forma imprudente e acaba tendo problemas, se envolve em acidentes, o que acaba se tornando um problema de saúde. Mas a maioria da população usa o automóvel de maneira segura e tal uso não se configura um problema de saúde pública.
4- Esse talvez seria um dos motivos pelos quais as pessoas enveredam pelo tráfico?
(Carl)  As pessoas sempre perseguem as necessidades básicas, não importa em qual sistema vivam. Elas precisam comer, morar, precisam do mínimo de respeito. Quando não se tem isso, elas vão buscar em outro lugar. De repente, vem alguém que oferece um 'trabalho' no tráfico ou qualquer outra atividade, e essa pessoa simplesmente pega.
5- Temos um dilema na Bahia: a maioria dos policiais é negra e educada para combater uma população predominantemente negra. Qual a percepção do sr. sobre essa realidade?
(Carl) Essa pergunta tem uns componentes notáveis. A primeira coisa é que toda pessoa, de qualquer raça, tende a ser morta por um semelhante dela. Por todo o mundo, não é incomum. Quando falamos de negros, achamos que seria incomum, mas não é. Segundo, quando pensamos na polícia, é uma organização que simplesmente faz o que a estrutura de poder quer que ela faça. E a estrutura de poder, nesse caso, é branca. Não é como se a polícia daqui se comportasse de forma anormal. Eles sabem a quem obedecem. É simples. Por isso que estou tentando enfatizar que é um problema não haver lideranças negras aqui. Por que, se houvesse, realmente poderia se traçar um panorama sobre quais são os problemas da violência, de fato. Não é uma garantia de que teríamos um entendimento por completo, até por que nos Estados Unidos temos lideranças negras em inúmeros locais, mas eles são igualmente ignorantes. Eles não entendem o que está acontecendo, enquanto outros são conscientes. Dessa maneira, o fato de haver lideranças negras não é garantia de que tenham uma leitura do contexto. Mas, certamente, essa presença aumenta as possibilidades de compreensão desse quadro.
6-Para sustentar a proibição, políticos no Brasil defendem que o sistema público de saúde não suportaria uma possível legalização...
(Carl)  Provavelmente, é algo estúpido e errado. Eu realmente não ouço políticos, não são pessoas que devem ser ouvidas nesse assunto, mas pessoas que têm publicações nessa área, que têm evidências, informação. Políticos, geralmente, são idiotas e, nem penso neles.
7-Salvador é a cidade com a maior população negra fora da África. Ainda assim, nunca tivemos um prefeito negro. Como o sr. vê isso?
(Carl)  É algo vergonhoso. Percebo que há muito poucos negros em posições de liderança. Por conta disso, penso que os negros daqui deveriam protestar. Deveriam ser educados para dizer: 'Isso é inaceitável!" Até que as pessoas tenham consciência disso tudo vai continuar na mesma. Enquanto houver essa falta de inclusão, toda a conta vai ser creditada às drogas. Há um apartheid silencioso acontecendo aqui.
8- O sr. acredita que o Brasil, assim como ocorreu com Obama nos Estados Unidos, um dia terá um presidente negro?
(Carl) Eu não sei se esse deva ser o objetivo primordial do Brasil, por agora. Não faço ideia. Até porque, se você me perguntasse se eu imaginaria que um dia haveria um presidente negro nos Estados Unidos, eu diria não. No final, estaria errado. Não sou muito bom nessas especulações. Penso que a população brasileira deveria se focar mais na igualdade, na inclusão dos cidadãos no mainstream (posição de destaque). Assegurar que deve haver mais negros com educação, moradia, empregos, na classe média. Penso que esse deva ser o foco.
(Entrevista exclusiva concedida ao site A TARDE)


quinta-feira, 26 de novembro de 2015


Racismo
 Porque é tão difícil entendermos que somos iguais?

Josiany Dórea
Rasgue a exclusão
Rasgue a discriminação
Rasgue o racismo
Rasgue o preconceito
Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza
Temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza
Heduardo Kiesse

Vejamos um texto reflexivo que nos remete sentimentos de revolta e indignação por ainda estarmos caminhando em passos lentos, porém, largos. Contudo, sabemos que é possível mudar a partir de uma consciência coletiva com atitudes nobres e educativas para as novas gerações. Vamos acreditar!!!
Esse é meu Grove!”, disse Deise Sousa, percussionista, às vezes poeta, feminista negra militante, assistente social, técnica do projeto Ponto de Cidadania e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia.
                                  LIBERDADE É LUTAR
Imagem: Zumbi 
- Obra da artista plástica brasileira 
Zulmira Gomes
Falar do dia 20 de novembro, enquanto mulher negra, feminista e militante, é mais um dia de reflexão, é mais um dia para demarcamos os nossos passos na direção do construto de luta contra a discriminação racial nas relações sociais que implicam nas assimetrias de gênero em busca da minha/nossa liberdade. Movida por um sentimento de justiça e indignação, meu lugar de fala é como militante e assistente social que atua na garantia dos Direitos Humanos para População em Situação de Rua.
Nessas circunstâncias, por “sermos diferentes”, que a minha memória insiste em ver as lágrimas vermelhas derramando sobre a pele escura. É um sentimento que reverbera dor, toda vez que puxo a respiração e sinto que sou atravessada pelo racismo, contaminado de machismo, misoginia e sexismo. Esse conjunto de opressões impulsionou as mulheres de minha família e outras mulheres negras a ocuparem espaços de subalternidade.
O racismo, acompanhado do estado heteropatriacal, indissociável de suas faces perversas, opera com ações simbólicas e materiais carregadas com as intersecções que objetivamente alimentam as matizes opressoras com efeito devastador em nossas vidas. No pensamento de Audre Lorde, ela enfatiza que “É aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças, pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande”.
A chaga aberta do racismo, se arvora em proferir ideologia de uma sociedade racista e fascista que constrói de maneira estratégica a perpetuação e reprodução do mito da igualdade racial. Assim, quando olho para dentro de mim e para meus pares, vejo homens e mulheres cotidianamente na labuta da sobrevivência. Decerto, corroboro com Jurema Werneck, que afirma: “NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE”. 
Portanto, ainda que o capitalismo patriarcal queira nos conduzir à margem da sociedade, nós resistimos; em especial, nós, mulheres negras, que quebramos paradigmas. Aqui, trago um exemplo de minha vida que certamente converge com outras histórias, em que apenas a terceira geração de mulheres de minha família conseguiu adentrar nas universidades. Ainda que, “nesse lugar” de luta, não estejamos livres de experimentar o sabor amargo do racismo, bem como não nos furtamos em esquecer a cena que revisita a minha/nossa memória por me ver e me identificar com a tragédia vivenciada por Cláudia Silva Ferreira, arrastada por uma viatura da Polícia Militar do Rio de Janeiro até a morte, ali é o meu sexo, meus lábios grossos, é o meu cabelo crespo, minhas idades, é naquele corpo que sustenta a minha classe, minha raça, minha história.
Precisamos resistir e criar estratégias de superação e combate ao racismo para que nossas crianças negras, oriundas da periferia, não experimentem vivências vexatórias como eu experimentei na minha infância, como mostra a letra da música “Nega do cabelo duro”, exemplos que tendem a produzir e reproduzir modelos na contramão da construção da autoestima, do protagonismo e do empoderamento delas.
            Resistimos, mesmo quando os nossos jovens são violentados pelo braço armado do Estado, justificando a sua ação racista na política de combate às drogas balizando um terreno fértil para ceifar a vida de nossa juventude negra e pobre. O saudoso Gey Espinheira pontuava essa ação como “negrocídio”.
Na semana do dia 20 de novembro, a tristeza toma meu peito com a perda de mais um guerreiro que o sistema projetou para as práticas transgressoras, homem negro, de uma sensibilidade e inteligência destacada, mas a sociedade excludente lhe deu régua e compasso, pois não basta ser pobre, faz-se necessário criminalizar a pobreza. Foi uma morte individual e concomitante coletiva, pois ramifica para outros espaços que simbolicamente afetam a saúde mental comunitária e, em especial, a familiar.
É mais uma mãe negra que chora pela perda de seu filho, é mais um filho que cresce sem a presença afetiva de um pai, é mais uma mulher negra sozinha que irá trabalhar potencialmente mais para prover a subsistência de sua família.
Com toda conjuntura negativa do contexto histórico do racismo ainda perpetrado no Brasil, nós resistimos engajadas/os com a luta do movimento negro, que culminou em diversas ações de políticas afirmativas, criação de leis e secretárias nas três esferas governamentais, atualmente avançamos com a ONU, proclamando a década internacional afrodescendente, que institui de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2024 o tema: “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”, objetivando promover o respeito, a proteção e a garantia de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes".
A Bahia foi o primeiro estado a aderir à proposta da SEPPIR. Assim, é importante celebrar as conquistas, mas não esqueçamos de apontar os desafios em reparar séculos de exclusão, opressão e exploração, contudo, estamos avançando com incansáveis passos largos para superação da desigualdade racial, intolerância religiosa e xenofobia que acomete a nossa população negra. 
Há um paradoxo nessa caminhada, estejamos atentos e atentas às máscaras da conjuntura política, econômica e neoliberal do Estado, porque ele tem cor e é macho. 
Precisamos combater o patriarcado e seus privilégios que usufruem de instrumentos materiais e ideológicos para manter-se no “berço esplêndido”. Será que nesse lugar não cabem as nossas diferenças ou alguma coisa está dentro da ordem para permanecer as desigualdades? Assim, sigamos com a Nação Zumbi: “Um homem/mulher roubado/a nunca se engana”.
As nossas lentes de gênero, classe e raça precisam estar afiadas, pois é lutando que mandamos o racismo embora. Que sejamos as mãos, os pés, os pensamentos e a voz para efetivar a justiça e igualdade de direitos. Que a nossa história esteja firme e segura em nossas mãos. Finalizo este ensaio com o pensamento negro de Nina Simone: “Liberdade para mim é isto: Não ter medo”.